terça-feira, 18 de julho de 2017



Liberdade para Ana Belén

Por Miriam Montes Monck (*)


Vários anos atrás o líder pacifista indiano Mahatma Gandhi disse: "Existe uma corte superior às cortes de justiça e essa é a corte da consciência. Ela supera todos as outras cortes".

Ana Belén Montes decidiu obedecer a sua consciência ao invés de obedecer a lei. Obedecer sua consciência lhe rendeu uma sentença de 25 anos de prisão em uma presídio de segurança máxima. Do lado de fora, o prédio parece um enorme depósito de túmulos de cor de concreto. Rodeado por um rastro de grama, verde e saudável, como para contrastar a sensação produzida pelos espaço desolador.

Mas a partir do interior do prédio não é possível notar que a vida pulsa no resto do mundo. Apenas tem janelas. No interior, o lugar cheira a urina e excrementos.

As paredes brancas do monótono Federal Medical Center, Carswell, localizado em Fort Worth, Texas, tem em uma de suas células uma prisioneira que difere da população em geral. Lá as mulheres gritam, arranham, mordem, chutam, destroem, enlouquecem ou são lançadas para morrer. Ela, no entanto, constrói para si uma bolha. A partir desse lugar de proteção tudo vê, tudo ouve, tudo sente; mas não morre. Se ela quebrar sua bolha, ela habitaria em um lugar tempestuoso. De alguma forma, Ana tem conseguido preservar quem sempre foi. Pelo menos a pessoa que estremeceu diante da injustiça e optou pela solidariedade com os feridos. Ela tem olhos vivos e mente desperta.

Há quatorze anos Ana Belén Montes sobrevive ao inferno de Carswell. Ele acorda todas as manhãs para enfrentar um dia igual ao anterior: privada de contato com a natureza, de abraçar seus entes queridos, de conversas coerentes e de uma atmosfera que alimenta seu senso de valor. Felizmente, sua consciência respira paz. Ela sabe que não poderia viver com o pensamento tranquilo se tivesse ignorado o povo cubano. Se tratava de um país golpeado por outro país. Um era poderoso e ávido de dominação. O outro, o cubano, decidido a construir um sistema próprio de governo.

O ano era 1985. E então, Ana Belén havia conseguido um emprego na Agência de Inteligência de Defesa, conhecida como DIA por sua sigla em inglês. Ela mesma decidiu procurar trabalho lá depois de completar um mestrado em Estudos Internacionais na Universidade Johns Hopkins. Ana foi uma estudante excepcional. Alguns anos antes ela se formou em Relações Exteriores na Universidade da Virginia. Sua inteligência, seu pensamento analítico e seu alto nível de responsabilidade, a fizeram alcançar postos de maior influência. A designaram para a Base da Força Aérea em Washington, onde ela trabalha como especialista em investigação de inteligência. Em 1992 se juntou ao Pentágono como analista. No momento da sua prisão, em 2001, Ana Belén trabalhava como um dos analistas especializados em Cuba.

Ana compreendeu o motor ideológico que impulsiona os países prepotentes. Soube do que eram e são capazes de fazer e impor seus negócios em terras estrangeiras. As intervenções dos EUA em países latino-americanos são tão antigas quanto o próprio país. Nicarágua, Guatemala, El Salvador, México, Chile, República Dominicana, Porto Rico, entre outros, têm sido objeto de manobras ilegais por parte do governo dos EUA. A história armazena tudo em sua memória.

Ana trabalhou nas entranhas do país poderoso. Até então a política do governo estadunidense impunha há mais de trinta anos castigos ao povo cubano. Hoje ultrapassa meio século de agressão e hostilidade. Ana poderia ter feito vista grossa. Afinal de contas, nem mesmo se tratava de seu país ou seu povo. Ela poderia ter feito silêncio. Fazer o que tantas pessoas faziam. Limitado-se a realizar seu trabalho e ignorar o que parecia impossível de mudar. Mas ela retorcia seus intestinos sempre que tomava conhecimento de um crime de Estado contra Cuba. Outro crime, e outro. Ela optou por um caminho que poucos escolhem. O risco é muito grande. Se joga com a liberdade pessoal. Além disso, a própria vida. Este é o mesmo anseio de justiça que impulsionou Martin Luther King, Mahatma Gandhi, Simon Bolivar, Nelson Mandela, e muitos outros heróis e heroínas que a história já conheceu. Se entregou como eles fizeram a um firme compromisso insubornável, ainda que todos tenham tomado caminhos diferentes na luta que escolheram. No fundo, todos tinham a mesma finalidade humanitária. Por isso foram capazes de levantar a voz e empunhar o braço. Por isso vibraram com os princípios que nos tornam humanos e bons vizinhos. Por isso também impulsionaram o sentido da dignidade; defenderam o direito à autodeterminação; resistiram à corrente da política esmagadora; e transgrediram a própria injustiça criada pelo braço opressor.

Talvez, sem saber, Ana Belén se insira na tradição da luta das Antilhas, anunciada por Ramón Emeterio Betances há mais de um século. Até então, a Confederação Antilhana busca terminar com o colonialismo europeu no Caribe, através da consolidação das Grandes Antilhas em um organismo regional que ajudaria a preservar a soberania da República Dominicana, Cuba e Porto Rico. Outros patriotas abraçaram a mesma ideia solidária de Betances: Eugenio María de Hostos, José Martí, Gregorio Luperón, Juan Rius Rivera, Pedro Albizu Campos, Juan Antonio Corretjer Montes, Juan Mari Brás e Rubén Berríos, entre outros. A luta continua.

Em 16 de julho de 1867, o Comitê Revolucionário de Porto Rico emitiu a seguinte declaração: "cubanos e porto-riquenhos, unam seus esforços, trabalhem em conjunto, somos irmãos, somos um na desgraça; sejamos um também na Revolução e na independência de Cuba e Porto Rico! Assim poderemos formar amanhã a confederação das Antilhas".

Como se tivesse em seu sangue os objetivos heroicos do líder antilhano, Ana Belén Montes, de pais porto-riquenhos, nascida na Alemanha e criada nos Estados Unidos, ofereceu sua vida para que Cuba pudesse preservar seu direito à autodeterminação, apesar das muitas pressões impostas pelo império estadunidense.
Ana Belén tinha a oportunidade em suas próprias mãos. O sistema estadunidense preparavam novos ataques contra Cuba. Ana se debatia entre duas opções: agir ou permanecer em silêncio. Se tornar cúmplice dos ataques ou denunciar a mão criminosa. Sentiu medo. Ela estava ciente das consequências das suas ações. Sabia que, se descoberta, teria que enfrentar uma sentença de prisão perpétua. Até mesmo a possibilidade de pena de morte. Enquanto isso, Ana não receberia nada em troca. Nem dinheiro, nem favores, nem reconhecimento. Talvez a solidão imposta por um trabalho clandestino que exigiria uma extrema discrição, e o medo de ser pega. Mas a voz da sua consciência foi mais forte. Se armou de valores. Ela tentou ajudar o país caribenho a se proteger do terrorismo de Estado organizado e financiado pelos Estados Unidos. Esse foi o seu crime.

Ana Belén foi presa em 21 de setembro de 2001, em seu escritório. Os agentes de segurança levaram uma cadeira de rodas para levá-la arrastada, caso fosse necessário. Não foi necessário. Pálida e em silencio, Ana caminhou ereta e com a cabeça erguida.

Um ano depois, em 16 de outubro de 2002, Ana enfrentou o Tribunal Federal dos Estados Unidos. Eles decretaram 25 anos de prisão em uma prisão de segurança máxima após declarada culpada de conspiração por cometer espionagem a favor da Diretoria de Inteligência de Cuba. Com sua coragem habitual, ela leu no Tribunal Federal as declarações que revelaram os princípios e os valores que a levaram a proteger o povo cubano da política hostil dos Estados Unidos. Em sua alegação ela proclamou o seguinte:

"Honrada, eu me envolvi na atividade que me trouxe diante de vocês, porque eu obedeci a minha consciência ao invés de obedecer à lei. Eu considero que a política do nosso governo em relação a Cuba é cruel e injusta, profundamente hostil, e me considerei moralmente obrigada a ajudar a ilha a se defender de nossos esforços para impor a ela nossos valores e nosso sistema político."

Ana Belén é minha prima irmã. Embora ambas vivêssemos em países diferentes (ela, nos Estados Unidos e eu em Porto Rico), sempre mantivemos correspondência e visitávamos durante alguns verões.

Desde criança, eu já sentia admiração por Ana. Lembro-me de sua tendência para estudo, a sua atitude reflexiva, sua discrição. Demonstrava bons sentimentos para com seus pais, seus irmãos, sua avó e suas tias. Sempre me pareceu sensata, bondosa, consciente dos outros e carinhosa com sua família. Mesmo seu cabelo longo e brilhante eu nos meus doze anos queria imitar. Com o tempo o respeito por minha prima cresceu. Observei seu sentido ético, a sua capacidade de mostrar solidariedade para com os menos afortunados, e sua atitude individual em favor dos outros. Uma vez, durante um verão em que ela estava hospedada em casa, tomou a iniciativa de contribuir financeiramente com um casal de poucos recursos que havia se casado. Ana teria dezesseis ou dezessete anos. Ela não os conhecia, não foi convidada para o casamento, mas a sua generosidade a moveu a ajudá-los anonimamente, e assim aliviá-los financeiramente. Suas inclinações, confesso, correspondia a um modo de vida muito diferente da promovida nas sociedades materialistas, com foco no efêmero, no engrandecimento do ego e no hedonismo.

Em mais um daqueles verões quando Ana nos visitava, notei que um dia se vestiu como um preto rigoroso. "Por que?", eu perguntei, a que ela respondeu: ". O pai da minha melhor amiga morreu." E acrescentou: "Eu quero estar com ela." Com gestos como este, no anonimato, Ana se solidarizava com os que sofriam. Sua amiga chamada Terry. Nunca me esqueci.

Quando Ana vinha a Porto Rico a praia era um destino obrigatório. Ela gostava de entra no mar, tomar sol, comer abacaxi fresco e beber água de coco. Desfrutava da companhia das primas e dos primos, especialmente dos mais brincalhões. Fazia questão de visitar a avó, tias e tias avós. Presenteava todas e era muito carinhosa.

Desde sua prisão, há 14 anos, Ana Belén e eu nos escrevemos tanto o quanto podemos. Confesso que desde então, nos temos nos aproximado ainda mais uma da outra. As cartas são um abraço à distância. As palavras impressas, um luxo. Através delas contamos a vida e os desafios de cada uma. Ela a partir de seu apertado mundo físico. Eu, da amplitude de um espaço sem bloqueio. Mas o espírito não conhece muralhas. Por isso as palavras que trocamos se encontram. Aí coincidem os anseios de Ana e os meus; as reflexões de Ana e as minhas; os amores de Ana e os meus. E o amor à prova de tréguas..

Ela não sabe, mas sua energia solidária sempre me moveu. É como se você tivesse sido impresso em suas células a consciência de que outro, diferente mas igualmente valiosa, existi. Eu também tenho enriquecido, ao notar a sua capacidade de ouvir atentamente, de se fazer presente com as palavras e com o sentimento, reagindo à dor dos outros e tornar-se parte da solução. Mas Ana me deu algo mais. Com a sua atitude, tem sido um exemplo de coragem e humildade. E me deu o privilégio de acompanhá-la, também "vestida de preto" dentro das grades de sua cela.

Ana Belén resiste. O faz agarrada aos princípios que inspiram sua vida. Por isso, quando em 14 de dezembro de 2014 o presidente Obama disse: "Estes 50 anos têm mostrado que o isolamento não funciona. É hora de uma nova estratégia", o coração de Ana retumbou. Ana não é ingênua. Ela sabe que a nação estadunidense procurará alcançar o seu objetivo, se não com fel, com mel. Ainda assim, interpreta o gesto do presidente como um sinal de uma possível reconciliação entre os dois países. E para Ana isso não é outra coisa que um anúncio de que seu sonho de amizade entre os dois povos está apenas começando a se tornar real.

Ana resiste graças à lealdade que ela manteve com sua própria consciência. Porque essa, queiramos ou não, nunca nos abandona. Por isso creio que a consciência de Ana o acompanha em meio a sua solidão. E tenho certeza de que, no meio do inferno que vive, lhe dá um sentido infinito de paz.

Ana resiste com as palavras que lê. Lê com avidez as palavras de outros. Ana se instrui, analisa, formula opiniões, se expressa. Sabe que os livros são um antídoto contra a estupidez e esquecimento.

Lê sobre história, política, espiritualidade, verdades universais na linguagem das crianças. Tem se encantado com José Mujica, ex-presidente do Uruguai, e com o Papa Francisco. Admiradora de ambos por sua profundidade, sua simplicidade e sua identificação com os menos afortunados.

Ana resiste enquanto assiste e aprecia a beleza natural em documentários narrados por David Attenborough no National Geographic transmitidos na prisão. Eles a recordam de que há um mundo harmonioso fora dos portões que a aprisionam. Ana abre espaço em sua alma para esse universo incrível. Ele sabe que, apesar das injustiças que testemunha, existe bondade humana. E, de repente, soube-se amada por um grupo de irmãos e irmãs de Cuba, de Porto Rico, França, Brasil, Itália, Canadá, República Dominicana, Chile, Argentina, entre outros, que apoiam e se solidarizam com os princípios que ela defende. Creio não estar equivocada ao afirmar que vocês têm aquecido seu coração.

Ana se permite sentir. Lágrimas caem quando a emoção a abraça. Se comove ao falar que a luta por ela é realmente a luta por um ideal mais amplo e mais importante que sua libertação. Essa luta se refere ao processo de reconciliar países e povos, para aproximar cidadãos do mundo, mesmo que eles tenham ou busquem diferentes modos de vida. Como ela mesma fala inspirada em um provérbio italiano: "O mundo todo é um mesmo país".

Ana ama Cuba. Porém ama mais as causas justas. Ele protegeu Cuba por ser o país atacado por uma nação poderosa e hostil. Se tivesse sido o contrário, se Cuba ou Porto Rico tivessem sido as nações poderosas, Ana teria defendido as crianças dos Estados Unidos.

Ana não quer protagonismo. Lhe incomoda a tratem por heroína ou excepcional. Para ela, o seu comportamento obedeceu uma obrigação pessoal que não poderia ser ignorada. Aconteceu exatamente o que acontece com médicos cubanos que sentem a obrigação de oferecer os seus serviços aos pacientes de ebola na África Ocidental apesar dos riscos envolvidos. Eles não se sacrificam para que a história os reconheça como heróis ou especiais. Apenas obedeceram a sua consciência; cumprindo sua obrigação assumindo todos os riscos. Uma obrigação que eles, exatamente como aconteceu com Ana, acharam impossível não atender.

Assim sinto Ana. Por isso não busca nem espera elogio. Por isso suporta as injúrias, por isso também suporta o medo que pode ser sua luta e ainda suporta o inferno da prisão. Para ela, o apoio a sua causa não é outra coisa senão o apoio à soberania de Cuba diante dos Estados Unidos; ou melhor, o direito que deve assistir a todos os países do mundo para construir o seu próprio destino. Ana ainda se solidariza com este princípio universal, e tenho certeza de que continuaria dando a vida desde que Cuba não abandone seu ideal libertário.

Essa é Ana. Internacionalista. Inegavelmente solidária. Respeitosa da humanidade. Agarrada aos princípios de justiça e paz pelos outros heróis e heroínas que tanto têm lutado através dos séculos. E com a modéstia que só podem ter aqueles que possuem ideais elevadas.

Liberdade para Ana Belén Montes!

(*) Miriam Montes Monck é prima de Ana Belén.

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